terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Dente Canino

Kynodontas, 2009
Dirigido por Giorgos Lanthimos, com Christos Stergioglou, Michele Valley, Aggeliki Papoulia, Mary Tsoni, Hristos Passalis e Anna Kalaitzidou.

Palavras-chave: isolamento, sexo, relações familiares




Da Grécia surgiu um dos melhores filmes da atualidade. Dirigido por Yorgos Lanthimos, esse terror/drama psicológico aborda temas chocantes e bastante curiosos, lida de forma forte com o comportamento humano, sem nenhum tipo de maneirismo tecnológico, de forma crua e impressionável, realista. Lançado no Brasil apenas na Mostra de São Paulo, “Kynodontas” promete ser um marco para uma geração. Mesmo que inviável para muitas pessoas, seu grau de maturidade chega a impressionar por lidar com temas tão abrangentes e de forma tão realista e, acreditem, surrealista da narrativa. Ainda que o surrealismo no filme seja somente uma ferramenta para fazer o expectador refletir, o trabalho para com a realidade é perfeito. É de um nível incomum, mesmo partindo da Europa, continente que faz todos os anos grandes obras. A Grécia talvez, com este filme, possa partir para um ramo de cinema atual respeitável, mesmo já tendo em sua história filmes como “Thiassos” (A Viagem dos Comediantes), de 1975; “Alexis Zorba” (Zorba, O Grego), de 1964 e “Topio Stin Omichli” (Paisagem na Neblina), de 1988.

Num subúrbio de uma grande cidade, uma casa com muros altos abriga um casal e três filhos. Esses três filhos, um homem e duas mulheres, nunca saíram dos limites da residência que tem tudo o que é necessário para a sobrevivência deles. O pai é dono de uma fábrica, a mãe é dona de casa e cuida dos filhos enquanto pai está fora. O casal impede que os filhos tenham qualquer contato com outras pessoas, por mais que dêem a noção de que há mais pessoas do lado de fora da casa, mas advertem aos filhos que tudo do lado de fora é extremamente perigoso, como quando um gato entra na propriedade. O filho mata-o com uma tesoura, depois o pai, para amedrontar os filhos e adverte-los quanto ao perigo que aquele animal traz, rasga suas roupas e suja-se com um líquido simulando sangue, como se ele tivesse sido violentamente atacado pelo animal.


Os pais também distorcem significados de palavras. “Carabina”, uma arma, é o nome de uma espécie de pássaro branco; “Mar” é uma cadeira, entre outras palavras que são diariamente ditadas e descritas para os filhos. Além disso, por causa do filho mais velho já ser adulto, o pai contrata uma mulher, Christina, a guarda de sua fábrica para satisfazer os impulsos sexuais do filho levando-a para sua casa, com uma venda, para que ela tenha relações sexuais com o jovem e que impeça que esses impulsos e a curiosidade atinjam suas irmãs, com idades parecidas. Ela é encaminhada até o quarto do filho e sistematicamente transa com ele. Ao mesmo tempo em que é um dever, ela o explora como objeto para si própria, nunca abusando dele. As filhas não possuem o mesmo problema, por serem menos impulsivas. A energia sexual delas ainda não descoberta, mas oculta e que pode se manifestar a qualquer momento, é canalizada para outros afazeres e atividades da casa.

A distorção da realidade é grande imposta pelos pais. Além da já citada mudança de significados de certas palavras, os pais traduzem as músicas que ouvem com letras leves de amor e união familiar. Os aviões que voam no céu são brinquedos que podem cair a qualquer momento. Os filhos vigiam cada avião que passa e aguardam ansiosamente para que um deles caia. A noite também é para ser temida, pois ficar do lado de fora da casa pode ser mortal e qualquer mal pode atingi-los. Os filhos são como crianças, brincam e têm seus conflitos entre eles, tudo de maneira saudável, mesmo que para a idade, já adultos ou quase adultos e as brincadeira mudem para algo mais brutal, como uma vingança ou ira repentina.

O pai explica para os filhos que só poderão sair de casa quando o dente canino, seja qual deles for, cair. Para sair de casa, deve-se sair com carro, pois a rua pode machucá-los e, para aprenderem a usar o carro, esse dente que caiu deve crescer novamente. Mas as coisas começam a desequilibrar quando, na relação sexual do filho mais velho e de Christina, ele não tem coragem de fazer sexo oral nela, o que gera raiva dela. Ela termina seu trabalho e vai até a filha mais velha e propõe a troca de sua tiara fluorescente, objeto que chama a atenção desta, contanto que ela faça sexo oral nela. Mostrando coisas novas e desconhecidas, introduzindo objetos diferentes e curiosos na casa e estes estando em contato com os filhos, Christina inicia o colapso do controle dos pais sobre os filhos, despertando a curiosidade destes para o mundo.


Os filhos são duramente castigados pelos pais quando eles desobedecem ou extrapolam de alguma forma os limites do “ético”, criando uma ambiência de tensão (somente para nós expectadores). Há pontos também, cada comportamento ou sucesso em uma disputa realizada pelos pais para os filhos geram pontos que geram um vencedor e o vencedor pode fazer algo como escolher o que comer. Quanto aos personagens, o pai é uma pessoa calma e dura, quer passar o exemplo de maturidade e conhecimento para os filhos, ao mesmo tempo em que cultiva o amor e a amizade e a não violência, mas às vezes extrapola ao castigá-los. A mãe segue o mesmo que o pai, sendo bruta em diversos momentos e carinhosa também. É a que toma conta deles, mas tem pouco foco, o pai é o personagem que tem mais atenção no filme. O filho é uma pessoa saudável para o meio em que vivem, seus impulsos sexuais são despejados em Christina e ele é competitivo, bastante sentimental, até mais que as irmãs, talvez por sofrer mais como a repreensão de Christina em relação à ele. A filha mais velha é muito próxima da irmã mais nova, aparenta ser mais madura e curiosa e se deixa levar pela influência de Christina. A mais nova segue os mesmos padrões, porém é mais sensível e “frágil”.

O filme procura não ser detalhista, pois, de acordo com o diretor, isso daria um ar de falsa realidade ao expectador. As coisas devem acontecer naturalmente na tela, e é isso o que acontece. A forma de dirigir o filme é “tranqüila”, a câmera é parada na maior parte do tempo, algumas vezes não focando em nada aparentemente importante e os atores podem sair da cena, falar fora delas, etc. A câmera é trêmula quando o diretor pretende criar outro clima para o filme, como uma corrida, a câmera corre atrás do ator dando uma adrenalina maior. O foco também é nas expressões de certos atores como ira, curiosidade, prazer e dor, típico de diretores como Ingmar Bergman e Michael Haneke.


O trabalho com os atores também merece destaque, pois quase todos tinham pouca intimidade com o cinema em si, alguns atuavam em teatros e a filha mais nova, Mary Tsoni é vocalista da banda punk “Mary and the Boy”. O filme requer muito dos atores, tanto em situações como em emoções. Vale destacar as características marcantes no filme. Há muita nudez e relação sexual quase ou explícita. Há até um momento em que é possível ver o filho sendo masturbado e seu pênis está ereto. A violência é também algo que marca presença e, sinceramente, muito bem. São algumas repentinas, outras bastante naturais como os castigos dos pais e os atos cometidos pelos próprios filhos entre eles.

Visivelmente maduro, o filme não se prende fechadamente a esta situação, a uma família liderada por alguém repressor. A família e a casa, que acaba se tornando um personagem do filme, significam o mundo. Cada indivíduo, personagem do filme representa classes e pessoas do mundo todo. O pai e a mãe significam o controle da mídia perante as pessoas, o que a mídia revela, o que ela impõe, a manipulação dela e a criação das pessoas, sendo os subordinados os filhos, os afetados e sem defesa. Os filhos são os moldes do mundo. Os muros são as barreiras e dificuldades, é o controle e o representante do “seguro” ou do temido imposto pelos pais. Todo esse conjunto também soa como um fator isolado. Os pais são a personificação do medo de todos os pais, que acabam se tornando controladores e repressores por terem medo de seus filhos interagirem com o mundo. O mundo fora dessa casa é um lugar caótico e monstruoso, como é proposto pelos pais aos filhos. Há uma história fictícia que os pais contam de haver mais um irmão, só que do lado de fora, este que sofreu as conseqüências do mundo e foi condenado ao isolamento pela sua desobediência.


“Kynodontas” é o primeiro filme de uma empresa de publicidade em Atenas, a Boo Productions. O Greek Film Center colaborou com a produção liberando 200.000 Euros, mas a maior parte foi feita com ajuda de voluntários. O filme também venceu “Um certain regard” no Festival de Cannes em 2009 e concorre ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2011, pois o filme só estreou nos Estados Unidos em 2010.

É o tipo de filme que pode decepcionar muitos e agradar outros muitos, pelo simples fato de tudo ser muito cru e difícil, para alguns, absurdo. Mas vale ressaltar que é um filme reflexivo e vale um debate, mesmo que pessoal, uma busca pelo significado. É também o tipo de filme que fica na memória durante muito tempo, suas cenas e acontecimentos são marcantes, mais pela carga emocional e angustiante que pelo sexo, pelo estético. É um filme que merece ser visto, mesmo quando sua distribuição é pequena (infelizmente), pois filmes não comerciais não costumam a fazer sucesso nos cinemas brasileiros, o que é realmente uma pena, pois as pessoas deixam de assistir grandes obras como essa.






Avaliação 10/10

Por Pedro Ruback

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