quinta-feira, 3 de março de 2011

Encarnações de Crianças Queimadas

O papai estava do lado de fora da casa instalando uma porta para o inquilino quando ouviu os gritos da criança e a voz da mamãe vindo aguda entre eles. Ele sabia se mexer bem rápido e a varanda dos fundos dava para a cozinha e antes da porta de tela bater atrás dele o papai tinha abarcado a cena toda, a panela virada nas lajotas do chão na frente do fogão e o jato azul do queimador e no chão a poça de água fumegando ainda enquanto os seus muitos braços se estendiam, o bebê com a fralda frouxa permanecia rígido, de pé com vapor saindo do cabelo e o peito e os ombros rubros e os olhos revirados e a boca bem aberta e parecendo de alguma maneira separada dos sons que saíam, a mamãe com um joelho no chão com o pano de prato tocando inutilmente o bebê e acrescentando aos gritos dele os seus próprios, histérica a ponto de estar quase congelada. O joelho dela e as solinhas macias dos pés descalços estavam ainda na poça fumegante, e a primeira ação do papai foi pegar a criança por baixo dos braços e levantá-la dali e levá-la para a pia, de onde arremessou os pratos já batendo na torneira para deixar a água fria do poço correr sobre os pés do menino enquanto com as mãos em concha ele juntava e jogava ou arremessava mais água fria sobre a cabeça e os ombros e o peito, querendo primeiro ver o vapor parar de sair dele, a mamãe por cima do seu ombro invocando Deus até que ele a mandou buscar toalhas e gaze se é que eles tinham, o papai movendo-se rapidamente e muito bem e a sua mente de homem vazia de tudo que não fosse objetivo, ainda inconsciente de como se movia suavemente ou de que tinha parado de ouvir os gritos agudos porque ouvi-los o deixaria congelado e tornaria impossível o que tinha de ser feito para ajudar o seu próprio filho, cujos gritos eram regulares como a respiração e seguiam tão longos que já tinham se tornado uma coisa na cozinha, algo mais que ele tinha de contornar agilmente. A porta do lado do inquilino pendia torta apenas da dobradiça superior e se movia levemente com o vento, e um pássaro no carvalho do outro lado da rua parecia observar a porta com a cabeça posta de lado enquanto os gritos vinham ainda do lado de dentro. As piores queimaduras pareciam ser o braço e o ombro direitos, o vermelho do peito e da barriga estava desbotando em cor-de-rosa sob a água fria e as solas macias dos pés não tinham bolhas que o papai pudesse ver, mas o bebê ainda cerrava as mãozinhas e gritava a não ser talvez agora apenas por reflexo, por medo, o papai viria a saber mais tarde que tinha pensado que poderia ser isso, com o rostinho distendido e veias exíguas saltando nas têmporas e o papai continuava dizendo que ele estava aqui ele estava aqui, a adrenalina baixando e uma fúria contra a mamãe por permitir que essa coisa acontecesse apenas começando a se formar em fiapos no mais fundo da sua mente e ainda a horas de se ver expressa. Quando a mamãe voltou ele não tinha certeza se devia enrolar a criança em uma toalha ou não mas ele molhou a toalha e enrolou, bem apertada como um cueiro, e ergueu o seu bebê da pia e o pôs no canto da mesa da cozinha para acalmá-lo enquanto a mamãe tentava verificar a sola dos pés com uma mão oscilando na área da boca e pronunciando palavras sem rumo enquanto o papai se curvou e ficou cara a cara com a criança na borda axadrezada da mesa repetindo o fato de que ele estava aqui e tentando acalmar os gritos do bebê mas ainda a criança gritava sem fôlego, um som alto puro e brilhante que seria capaz de fazer parar o seu coração e os seus lábios pequenininhos e as gengivas tingidas agora com o azul claro de uma chama baixa o papai pensou, gritando como se quase ainda sofrendo sob a panela virada. Um minuto, dois assim que pareceram muito mais longos, com a mamãe ao lado do papai falando como um bebê diante do rosto da criança e a cotovia no ramo com a cabeça de lado e a dobradiça ficando com um risco branco por causa do peso da porta inclinada ate que o primeiro fiapo de vapor foi visto preguiçoso saindo da borda da toalha enrolada e os olhos dos pais se encontraram e se alargaram - a fralda, que quando eles abriram a toalha e reclinaram o seu menininho no pano axadrezado e soltaram os adesivos amolecidos e tentaram remover, resistiu um pouco com novos gritos agudos e estava quente, a fralda do seu bebê queimou as mãos dos dois e eles viram onde a água de verdade tinha caído e empoçado e ficado queimando o seu menininho o tempo todo enquanto ele gritava pedindo que eles ajudassem e eles não tinham, não tinham pensando nisso e quando eles a tiraram e viram o estado do que estava lá a mamãe disse o primeiro nome do Deus deles e agarrou a mesa para não perder o pé enquanto o papai se virou e esmurrou o ar da cozinha e amaldiçoou tanto a si próprio quanto ao mundo pelo que não seria a última vez enquanto o seu filho podia agora estar dormindo não fosse pelo ritmo da sua respiração e os minúsculos movimentos bruscos das mãos no ar que encimava o lugar onde estava deitado, mãos do tamanho do polegar de um adulto que tinham agarrado o polegar do papai no berço enquanto ele observava a boca do papai se mexer cantando, com a cabeça de lado e parecendo olhar através dele, bem longe, alguma coisa que os seus olhos faziam o papai sentir que o deixava solitário de uma maneira estranha. Se você nunca chorou e deseja, tenha um filho. Rasgue o peito e não sei que mais seja, uma criança e a música estalada que o papai ouve de novo como se a mulher do rádio estivesse quase ali com ele olhando para baixo vendo o que eles fizeram, apesar de que horas depois o que o papai vai ser mais incapaz de perdoar é o quanto ele queria um cigarro bem naquele momento enquanto eles colocavam na criança como podiam uma fralda de gaze e duas toalhas de mão cruzadas e papai o erguia como um recém nascido com o crânio na palma de uma das mãos e corria com ele para a caminhonete modificada e deixava borracha especial por todo o caminho até o centro da cidade e o pronto-socorro da clínica com a porta do inquilino aberta pendurada daquele jeito o dia inteiro até que a dobradiça cedeu mas aí ja era tarde demais, quando não parava e eles não conseguiam fazer parar a criança tinha aprendido a sair e observar todo o resto se desdobrar de um ponto lá no alto, e o que quer que se tenha perdido nunca a partir dali teria importância, e o corpo da criança se expandiu e caminhou pela terra e recebeu sua paga e viveu sua vida desocupado, coisa entre as coisas, a alma que era dele agora uma certa quantidade de vapor nos céus, caindo como a chuva e depois subindo, o sol para cima e para baixo como um ioiô.


David Foster Wallace
Este conto faz parte do livro Oblivion.

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