quinta-feira, 3 de março de 2011

The Boy

Toda pessoa plena tem ambições, projetos, objetivos. O objetivo desse menino em particular era tocar com os lábios cada centímetro quadrado de seu próprio corpo. Os braços até os ombros e a maior parte das pernas, abaixo dos joelhos, foram brincadeira de criança, mas depois dessas áreas de seu corpo a dificuldade aumentou com a abruptude de uma plataforma continental. O menino veio a entender que desafios inconcebíveis esperavam por ele. Ele estava com seis anos de idade.

Pouco há para se dizer sobre o ímpeto ou causa-motriz do objetivo do menino de tocar com os lábios cada centímetro quadrado de seu próprio corpo. Ele um dia tinha ficado preso em casa, com asma, uma manhã chuvosa e prolongada, aparentemente folheando um pouco do material promocional do pai. A asma era congênita. A área externa do pé, abaixo e em torno do maléolo lateral (o menininho pensava naquela época no maléolo lateral como ‘aquela bolinha esquisita’ no tornozelo) foi a primeira a requerer qualquer contorção mais séria. A estratégia, conforme ele a compreendia, era se dispor no piso acarpetado de seu quarto com a parte interna do joelho no chão e a perna e o pé em um ângulo tão próximo dos noventa graus em relação à coxa quanto ele podia, àquela altura, conseguir, então ele tinha de se inclinar lateralmente tanto quanto pudesse, curvando-se sobre o tornozelo torcido e a parte externa do pé, girando o pescoço para fora e para baixo e se esforçando, com os lábios plenamente estendidos na direção de uma seção da parte externa do pé que ele tinha marcado com um alvo de tinta solúvel, lutando para respirar contra a pressão dextrógira das costelas, esticando-se cada vez mais para o lado, em uma manhã bem cedo, até que sentiu um estalo choco na parte de cima das costas e então uma dor inominável em algum lugar entre a omoplata e a coluna. O menino não gritou mas meramente ficou sentado nessa postura torturada até que o fato de ele não aparecer para o café-da-manhã trouxe seu pai para o andar de cima, à porta do quarto. A dor e a conseqüente dispnéia deixaram o menino fora da escola por mais de um mês. Pode-se apenas imaginar o que um pai pôde pensar de uma lesão como essa em um menino de seis anos.

A quiroprática do pai, a Dra. Kathy, conseguiu aliviar a pior parcela do desconforto. Mais importante, foi a doutora Kathy que apresentou o menino aos conceitos de coluna-como-microcosmo e de higiene espinal e eco postural, incrementalismo e flexão. A doutora Kathy cheirava vagamente a funcho e parecia totalmente aberta e disponível e bondosa. O menino se deitava de bruços em uma mesa alta acolchoada e acomodava o queixo em um copinho. Ela manipulava a cabeça dele muito delicadamente mas de uma maneira que parecia fazer coisas acontecerem por toda a coluna do menino abaixo. As mãos dela eram fortes e macias, e quando apalpava as costas do menino ele sentia como se estivesse fazendo perguntas a ela e as respondendo todas ao mesmo tempo. Ela tinha cartazes nas paredes com vistas ampliadas da coluna humana e dos músculos e fáscias e feixes nervosos que cercavam a espinha e se ligavam a ela. Não havia qualquer pirulito à vista. Os exercícios específicos de alongamento que a doutora Kathy passou para o menino eram para o splenius capitis e longissimus cervicis e as profundas camadas de músculos e nervos que cercavam as vértebras T2 e T3 do menino, que eram o que ele tinha machucado. A doutora Kathy tinha óculos de leitura pendurados em um colar e uma blusa verde de abotoar que parecia ser feita inteiramente de pólen. Você podia ver que ela falava com todos da mesma maneira. Ela instruiu o menino a fazer os exercícios de alongamento todo dia e não deixar que o tédio ou uma redução da sintomologia evitassem que ele realizasse os exercícios reabilitativos de maneira aplicada. Ela disse que a meta a longo prazo não era o alívio do desconforto atual mas a saúde e a higiene neurológicas e uma integridade corporal que ele um dia agradeceria muito, muito mesmo. Para o pai do menino a doutora Kathy receitou um relaxante fitoterápico.

Quase todos os contorcionistas profissionais são na verdade simplesmente pessoas que nasceram com problemas congênitos de atrofia ou distrofia dos grandes recti ou com uma aguda flexão lordótica da coluna lombar, ou ambos. A maioria exibe o sinal de Chvostek ou outras formas de espasticidade ipsilateral. Há muito pouco esforço ou aplicação envolvidos na sua ‘arte’, portanto. Em 1932, estudiosos britânicos do misticismo tamiel documentaram uma pré-adolescente taiwanesa que era capaz de inserir pela boca e no esôfago ambos os braços até o ombro, uma perna até a virilha e a outra perna até logo acima da patela e que assim era capaz de rodopiar sem auxílio sobre o joelho oralmente protrusivo em velocidades superiores a 300 rpm. O fenômeno da suifagia, ou auto-engolimento, foi posteriormente identificado como uma forma rara de paica de inanição causada quase sempre por deficiências radicais de cádmio e/ou zinco.

As regiões internas das coxas do menininho até o entroncamento medial da virilha custaram meses só de preparação. Diariamente, horas consumidas de pernas cruzadas e em postura curvada, lenta e progressivamente alongando as longas fáscias verticais das costas e do pescoço, o spinalis thorasus e o levator scapulae, o iliocostalis lumborum até o sacro e os densos e intransigentes gracilis, pectineus e adductor longus da parte interna da coxa, que se fundem abaixo do triângulo de Scarpa e transmitem uma dor nauseante através do púbis sempre que se excede o limite de flexibilidade. Caso alguém a tivesse visto então, durante essas sessões de duas, três horas, colocando as solas dos pés juntas e puxando-os para dentro para treinar o pectineus, oscilando um pouco e então sustentando uma profunda inclinação com as pernas cruzadas para exercitar a grande e tensa camada de fáscias toraco-lombares que ligavam a sua pélvis à região dorsal, a criança teria parecido ou estar orando ou ser clinicamente autista, ou ambos. Quando os alvos interiores das coxas tinham sido atingidos e tocados com um ou com os dois lábios, as porções superiores da genitália foram simples e foram protrusivamente beijadas e deixadas para trás enquanto já se concebiam os planos para o ílio e a região externa das nádegas. Depois dessas realizações viriam as contorsões mais difíceis, que mais cobrariam do pescoço, necessárias para se atingir as regiões internas das nádegas, o períneo e a parte mais interna da virilha.

O lugar especial em que ele perseguia esse objetivo estranho mas agora recém amadurecido era seu quarto, que tinha um papel de parede com repetidos motivos de floresta. A janela do quarto de segundo andar se abria para uma vista da árvore do quintal. A luz do sol atravessava a árvore em ângulos e intensidades diferentes em diferentes momentos do dia e iluminava partes diferentes do menino que se detinha de pé, sentado, inclinado ou deitado no carpete do quarto se alongando e sustentando posições. O carpete do quarto era de um branco felpudo, com uma aparência polar que o pai não achava que combinasse bem com o esquema repetido das paredes, de tigre, zebra, leão, palmeira. Mas o pai guardava suas opiniões.

O aumento radical do alcance protrusivo dos lábios requer o exercício sistemático das fáscias maxilares, tais como o depressor septi, orbicular oris, depressor anguli oris, depressor labii inferioris e os grupos buccinator, circumoral e risorius. Há um envolvimento superficial de músculos zigomáticos. Práxis: prender barbante a um botão de pelo menos 1,5 cm de diâmetro emprestado da segunda melhor capa de chuva do pai; colocar o botão sobre os dentes frontais superiores e inferiores e cobrir com os lábios; puxar o barbante até sua extensão total em um ângulo de 90º com o plano do rosto e puxar pela ponta com força gradualmente maior, usando os lábios para resistir à força; manter por 20 segundos; repetir; repetir.

Às vezes o pai ficava sentado no chão diante da porta do quarto do menino, com as costas apoiadas na porta. Não é claro se o menino jamais chegou a ouvi-lo procurando escutar ruídos de movimentos dentro do quarto, embora a madeira da porta às vezes fizesse um ruído rangido quando o pai se encostava contra ela ou voltava a se levantar no corredor ou mudava de posição, sentado encostado contra a porta. O menino estava lá dentro se alongando e sustentando posições contorcidas por períodos de tempo extraordinariamente longos. O pai era um homem algo nervoso, com um comportamento apressado, irrequieto, que sempre lhe dava um ar de partida iminente. Tinha diversas atividades empreendedorísticas e estava quase sempre na corrida. O lugar que ele ocupava nos álbuns mentais da maioria das pessoas era provisório, cercado por algo como uma linha pontilhada, a imagem de alguém dizendo algo agradável por sobre o ombro ao se dirigir para a saída. A maioria dos clientes achava que o pai os deixava nervosos. Era ao telefone que ele funcionava melhor.

Aos oito anos de idade, o objetivo de longo prazo daquela criança estava começando a afetar seu desenvolvimento físico. Seus professores perceberam mudanças em sua postura e seu andar. O sorriso do menino, que a essa altura parecia constante por causa dos efeitos da hipertrofia circum-labial na musculatura circum-oral, também parecia incomum. Simultaneamente rígido e extra-amplo, e de certa forma, para usar a avaliação de uma professora de Estudos Sociais, ‘inadequado para a idade’. Fatos: o estigmatista italiano Padre Pio exibiu chagas desprovidas de sangue que lhe atravessam a mão esquerda e os dois pés, centralmente, durante toda a vida. A úmbria santa Verônica Giuliani apresentava chagas em uma das mãos, assim como em seu flanco, que se podia observar abrir, as chagas, e fechar conforme ela ordenasse. A beata do século XVIII Giovanna Solimani permitia que peregrinos inserissem chaves especiais nas chagas de suas mãos e as girassem, o que segundo os relatos facilitava a recuperação daqueles clientes de seu desespero racionalista. Segundo tanto são Boaventura quanto Tomás de Chilano, os estigmas manuais de são Francisco de Assis incluíam massas baculiformes do que parecia ser carne negra endurecida em extrusão a partir dos dois planos volares. Se e quando aplicava-se pressão a um dos assim ditos ‘cravos’ nas palmas das mãos, um pino de carne negra endurecida imediatamente se projetava das costas da mão bem exatamente como se um assim dito cravo real estivesse atravessando a mão. E no entanto, fato: as mãos não têm a massa anatômica necessária para sustentar o peso de um humano adulto. Tanto textos jurídicos romanos quanto o exame contemporâneo de esqueletos do século I confirmam que a crucifixão clássica exigia que os cravos fossem pregados através dos pulsos, não das mãos, da vítima, donde as ‘necessariamente simultâneas verdade e falsidade’ dos estigmas que o teólogo existencialista E. M. Cioran explica em seu Lacrimi si Sfinti, o mesmo trabalho em que se refere ao coração humano como ‘a chaga aberta de Deus.’

Áreas das seções medianas do menino, do umbigo ao processo xifóide na cesura de suas costelas, sozinhas, tomaram dezenove meses de exercícios posturais e de alongamento, alguns dos quais, os mais radicais, devem ter sido insanamente dolorosos. Nesse estágio, os avanços em flexibilidade eram agora sutis a ponto de serem detectáveis apenas com um registro diário extremamente acurado. Certo limites tênseis dos ligamentos da flava, da cápsula e do processo, do pescoço e da parte superior das costas, foram delicada mas persistentemente alongados, o queixo do menino postado na seção mediana do esterno e então deslizando gradualmente para baixo, 1, às vezes 1,5 mm por dia, e essa postura catatônica e/ou meditativa sendo sustentada por uma hora ou mais.

No verão, durante sua rotina do começo da manhã, a árvore diante da janela do menino se enchia de gralhas e fervilhava de gralhas que iam e vinham, então, na medida em que o sol se erguia, a árvore se enchia dos sons ríspidos, rascantes, dos pássaros, que enquanto o menino ficava sentado de pernas cruzadas com o queixo no peito soavam pelo vidro como parafusos enferrujados girando; algo complexamente emperrado que se liberava com um ganido. Além da árvore ficava a perspectiva dos telhados da vizinhança e o hidrante de incêndio e a placa de trânsito de um entroncamento em cruz e os sessenta e quatro telhados idênticos e de águas baixas de um conjunto suburbano depois da rua em cruz e, além do conjunto, bem no horizonte, a orla dos campos de milho verdejantes que começavam nos limites da cidade. No fim do verão o verde dos campos era mais amarelado e depois, no outono, havia apenas o triste restolho e no inverno a terra nua dos campos parecia com nada mais do que aquilo que realmente era.

Um místico bengali conhecido por seus seguidores como Prahran Sahta II passava por períodos de canto meditativo durante os quais seus olhos deixavam as cavidades e ascendiam para flutuar sobre sua cabeça presos apenas por seus ligamentos de dura-mater e então exibiam (os olhos), flutuando por sobre a cabeça do místico, movimentos rotatórios rítmicos estilizados que testemunhas ocidentais descreveram como algo que evocava Shivas dançantes com quatro rostos, serpentes encantadas, hélices genéticas entrelaçadas, as órbitas contrapontísticas em formato de 8 da Via Láctea e da galáxia de Andrômeda em torno uma da outra no perímetro do Grupo Local, ou todas as quatro coisas ao mesmo tempo.

E também jamais se estabeleceu com precisão por que esse menino se devotou a ser capaz de tocar com os lábios cada centímetro quadrado de seu próprio corpo. Não há nem mesmo a clareza de que ele concebesse seu objetivo como uma realização no sentido convencional. Ele não tinha assistido Acredite se Quiser e jamais havia sequer ouvido falar dos irmãos McWhorter. Certamente não se tratava de alguma proeza física ou de auto-evecção. Pelo menos isso foi comprovado. O menino não tinha qualquer desejo consciente de ‘transcender’ alguma coisa. Se alguém tivesse perguntado, o menino teria dito apenas que tinha decidido tocar com os lábios todo e qualquer micrômetro quadrado de seu próprio corpo individual. Ele não teria sido capaz de dizer mais que isso. Conceitos ou concepções de sua própria inacessibilidade física a si mesmo (como somos todos nós inacessíveis a nós mesmos e podemos, por exemplo, tocar com os lábios partes uns dos outros que sequer podemos começar a abordar, labialmente, em nós mesmos) ou da completa determinação do menino de aparentemente atravessar aquele véu de inacessibilidade (de ser de certa forma idiossincrática auto-contido e –suficiente – plenamente disponível para si próprio) estavam além do escopo de sua consciência. Ele era só uma criança. Seus lábios tocaram as aréolas superiores de seus mamilos esquerdo e direito no outono de seu décimo ano. Os lábios a essa altura eram marcadamente grandes e protrusivos. Parte de sua rotina diária eram monótonos exercícios de botão e barbante concebidos para promover a hipertrofia dos músculos orbiculares. A capacidade de estender os lábios em forma de bico em até, aos nove anos de idade, 11.4 centímetros, tinha muitas vezes sido a diferença entre atingir certas partes de seu tórax e não. Foram os músculos orbiculares, mais que qualquer destacado avanço na higiene vertebral, que permitiram que ele acessasse as regiões posteriores do escroto e porções substanciais das dobras entre o escroto e a região interna das coxas antes mesmo de chegar aos nove anos. Essas áreas tinham sido tocadas, marcadas nas cartas anatômicas de quatro lados dentro de seu caderno pessoal e depois lavadas para retirar a tinta e esquecidas. A tendência do menino era de esquecer cada ponto depois de o ter tocado com os lábios como se o estabelecimento de sua acessibilidade tornasse o ponto dali por diante irreal para ele e o ponto agora de certa forma existisse apenas na carta anatômica de quatro faces.

As regiões medianas e superiores de suas costas foram as primeiras grandes áreas de indisponibilidade radical, talvez impossível, a seus próprios lábios, apresentando desafios à flexibilidade e à disciplina que ocuparam uma grande percentagem de sua vida interior na quarta e na quinta séries, e adiante, é claro, como as quedas d’água no fim de um longo rio, ficavam as inconcebíveis perspectivas de alcançar a nuca, os 8 centímetros logo abaixo da ponta mentálica do queixo, a gálea da parte de trás e do topo da cabeça, a testa e a região zigomática, as orelhas, o nariz, os olhos, assim como a paradoxal Ding an sich dos seus próprios lábios, cujo acesso parecia ser como a idéia de pedir a uma lâmina que se cortasse. Esses pontos ocupavam um lugar quase-mítico no plano geral. O menino os reverenciava de forma a colocá-los quase fora do alcance das intenções conscientes. O menino não era por natureza preocupado (ao contrário de si próprio, seu pai pensava) mas a inacessibilidade desses últimos pontos parecia tão radicalmente titânica que era como se a sombra por eles projetada caísse sobre todo o lento progresso na direção da clavícula na frente e da curvatura lombar, por trás, que ocuparam seu décimo-segundo ano vivo, escurecendo todo o projeto. Sombras tenebrosas que o menino escolhia ver como algo que dava à empreitada uma dignidade sombria mais que qualquer espécie de futilidade ou páthos. Ele ainda não sabia como, mas acreditava, ao se aproximar da puberdade, que sua cabeça lhe pertenceria. Ele acharia uma forma de acessar-se todo no fim. Ele tinha nada que alguém jamais pudesse chamar de dúvida, por dentro.


David Foster Wallace

Originalmente, o conto não tem título, é um fragmento e foi assim chamado quando publicado para The New Yorker.

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