segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Especial de Halloween - Conto "Nuvens"

Abrindo o mês do Halloween, segue o primeiro conto do mês sobre o tema chamado Nuvens.



O sol se levantou naquele dia. Tudo estava coberto de nuvens brancas e com variações para o cinza e cinza escuro. Um dia entristecido, mas não triste. O sol, escondido atrás das nuvens não deixa de iluminar o solo, mas as pessoas não compreendem, dizem que não há sol hoje. Dentro de um campo aberto cercado por uma plantação de abóboras, e distante da cidade grande e de até mesmo o subúrbio, encontra-se uma casa velha, com marcas de mofo e da chuva que em alguns dias aterroriza o telhado sujo pelos dias de ventania e sol, que suja as paredes, provavelmente brancas algum dia estiveram, agora esverdeadas e em muitos locais, negro. Perto do solo coberto de grama verde encontra-se a maior concentração de fungos fedidos e é onde o mofo também ataca. Talvez, quando a casa vier a ruir, começará por baixo.

Não há luz, como na maioria das casas em fazendas distantes. Isso faz prevalecer a cultura e a sensação de antiguidade ou passado para um ser saudosista. Ou então pouco o indivíduo se preocupou com isso algum dia. Talvez sim, talvez não, como sempre. De longe mal se pode observar o que ronda aquela casa, o que aquele homem que tem uma plantação enorme de abóboras faz quando não está apreciando sua criação. Pelo tamanho da casa, qualquer um chuta o básico, talvez sem banheiro. Nenhuma sombra cercava o local, nem nenhum local, naquele dia podia-se ver melhor o interior da casa, ainda que seja impossível dizer o que aquele velho homem fazia lá dentro. Mesmo que não seja de interesse algum de ninguém que tenha o mínimo de ocupação ou preocupação com o que está querendo fazer da vida. As crianças que rondam o local na noite do Halloween fazem baderna e bagunça, destroem abóboras, sujam a casa, enquanto esta resiste bravamente. O velho nunca se manifesta, parece manter-se em plena paz no interior da casa enquanto é atacado. Interessante perceber que o velho tem como rotina, não se isolar do mundo, mas viver da melhor forma possível, ainda que seja sozinho, solitariamente e, provavelmente, saudavelmente. Abre as janelas de madeira de sua casa ao máximo deixando o ar da manhã entrar e sai, depois de um tempo, para sua plantação, com um ancinho em mãos, apoiado em seu ombro como um caçador clássico de filmes de terror que andam com suas armas sobre os ombros e fazem poses ameaçadoras.

Arqueado, olhar distante, sobrancelhas grossas e grisalhas, pouco cabelo que sai de debaixo de um chapéu de palha redondo e velho. Magricelo, aparentemente fraco e frágil, ainda mais quando faz força para capinar e livrar sua plantação de animais e plantas daninhas. Queixo grande, pescoço comprido, alto, pernas longas, veste-se quase sempre com uma blusa branca que sempre acaba ficando marrom, um macacão curto e envelhecido pelo sol, esbranquiçado. Qualquer um que pare por algum tempo para observá-lo sentirá, sem dúvidas, pena e tristeza daquele indivíduo solitário, que não parece sorrir, apenas manter uma expressão neutra e com uma única forma de escapar de sua vida que é olhando além do horizonte que o cerca, imaginando o que pode haver depois de tudo. Mas será que ele é capaz disso? Será que ele se conforma com a forma como vive?

Do que esse homem sobrevive, o que come? Apenas o que planta ou será que ele tem uma reserva de comida incrível no interior de sua pequena casa? Impossível. Impossível também ele sair para a cidade comprar algo, logo seria notado pelas pessoas a não ser que ele adote uma outra personalidade, se vista de forma vistosa, disfarçando-se para que ninguém suspeite dele, ou simplesmente se vista de uma forma melhor para ir à cidade e não chamar a atenção. Quem se importa. Naquele dia, o chamado “Dia das Bruxas”, o velho não iria sair de casa, ele se manteria de guarda, trancaria tudo com cadeados irrompíveis e torceria, de olhos fechados diante de um crucifixo que suas abóboras sejam poupadas, pelo menos as que ele mais gosta. Óbvio demais, aquele velho tem outros planos. Naquela manhã tranqüila, onde o céu anunciava o humor das pessoas e o que estaria por vir no fim da tarde, início da noite e se prolongaria por toda a madrugada. No fim da tarde e início da noite, as crianças atacam, saem de suas casas com suas sacolas e fantasias pedindo doces, fazendo algazarra e travessuras. No fim da noite os jovens e alguns adultos saem para as festas e bailes ou encontros.

O velho homem saiu de sua casa após abrir as janelas, como sempre faz todos os dias de sua monótona e corriqueira vida. Caminhou pela plantação de abóboras com o ancinho sobre o ombro segurando-o com uma das mãos. Olhar distante e olhar objetivo, ele examinou todas as abóboras que pôde, minuciosamente e delicadamente. Agachou-se quando achou que fosse necessário, quando uma abóbora lhe parecia interessante demais ou perfeita.

Ele agachava e seus joelhos tremiam com o movimento, ele sentia que ia desmoronar, que suas juntas iriam romper-se com seu peso que não era muito. Quando levantava o estalo era ainda mais alto e a dor, pelas várias vezes que repetia tal movimento, era alucinante. Ele e aquele ancinho que, pelo tempo, tinha um aspecto sinistro, enferrujado. Sentiu dor no ombro e trocou de lado trocando também de mão. Às vezes ele repousava sua ferramenta no solo enquanto olhava e tocava, pegava uma abóbora que lhe parecia fabulosa. Ele olhou todo o campo, procurava a abóbora perfeita, peso perfeito, casca grossa e de cor viva. A mais bela das belas abóboras que ele cultivava seria a escolhida. E foi no fim da manhã, quando começou a chuviscar fino e o vento soprar frio que ele encontrou, naquelas centenas de abóboras espalhadas por um vasto campo, ele encontrou sua abóbora perfeita.

Formato perfeito, grande, mas não exagerado, sem gomos excessivos ou rachados ou qualquer deformidade. O talo era perfeito, todo o seu corpo era perfeito, sua espessura e peso. Ele então tirou, de debaixo de sua calça, preso em sua canela, um facão também velho e de aparência medonha que ele nunca havia usado. Puxou e um barulho de corte soou pelo ar, pelo silêncio daquela manhã fria. Desceu precisamente o facão no talo e retirou a abóbora. Levantou-se e não se lembrou de sentir dor, guardou o facão e esqueceu o ancinho no chão. Sem desgrudar os olhos de seu precioso objeto, ele caminhou sem erro, desviando de sua plantação precisamente e entrou em sua casa. A porta fechou-se, mas é impossível dizer se foi realmente ele. Ele adentrou na escuridão de sua casa que agora parecia mais sombria que nunca e mais isolada que nunca. Toda aquela vida simples, pelas próximas horas, sumiu. A casa permaneceu lá, janelas abertas, móveis balançando com o vento que cruzava os cômodos, folhas que se desprendiam das árvores em volta que voavam pelo ar. No início da tarde o tempo fechou, escureceu e ameaçou chover. O vento estava forte, as janelas de madeira da casa chocavam-se nas paredes e uma nas outras.
O uivo natural do vento deixou de ser um belo som e tornou-se um som macabro, uma sinfonia para o que estava acontecendo dentro daquela casa. Por mais que observássemos atentamente de fora, não faríamos idéia do que poderia estar acontecendo. Mas lá estava, sob o tapete de seu pequeno quarto, uma passagem de madeira, simples e gasta. Os móveis de sua casa eram simples, soavam tranqüilos e esquecidos pelo tempo e pelo ser humano, habitado apenas pela natureza morta dos quadros nas paredes e nas flores do tapete escuro. Melancolia é o que se sente ao entrar na casa daquele homem, principalmente quando em um dia desses.

O homem estava silencioso, mas muito ansioso. Seus olhos se fixaram de tal maneira na abóbora que só puderam focar outra coisa quando se encontrou por fim no seu porão escondido, um cômodo da área de sua casa na superfície, não muito grande, mas com mais espaço do que cômodos. Ali ele guardava o que bem queria, como objetos curiosos e antigos, dinheiro, moedas antigas, peles de animais caçados em sua juventude que ele não ousa colocar em sua casa como decoração. O local servia também como oficina, uma oficina há muito esperando para ser usada, mas que nunca foi usada por nunca ter havido motivo para isso. Enquanto o tempo passava, o homem gastava seu tempo lendo livros sobre diversos assuntos que estão empilhados e expostos em uma prateleira que ele classifica em ordem alfabética e por tipo. Nenhum romance, nenhum conto, nenhum entretenimento aparente. O homem se entretinha em ler livros de biologia, ciências, natureza humana, anatomia, plantas e, mais estranhamente, espiritismo, ocultismo bíblico e até mesmo feitiçaria. Mas o que importa coisas tão diferentes? Ele responderia que tudo isso tinha uma ligação tão forte quanto a matéria e a matéria. O espírito e o inconsciente, o consciente, o conhecimento e o desvendamento dos limites físicos do ser humano, do corpo humano e animal, “máquinas” perfeitas e impossíveis de se copiar.

Concentração final, últimos preparos. Ele abriu a abóbora, retirou sua polpa, tudo de forma clássica, até o momento, parecendo ter planos de fazer uma abóbora lanterna de Dia das Bruxas. Sua concentração não permitia sorrisos nem demonstração de emoções. Seu cenho quase sempre franzido, olhos atentos, dessa vez, nunca distantes. Dentes apertados, uns contra os outros dentro da boca fazendo crescer os lados de seu rosto fino e magro. Tudo pronto, no fim ele abriu buracos para os olhos, narinas e boca da abóbora. Um sorriso maligno e um olhar aparentemente tranqüilo. As narinas eram dois triângulos juntos. Por fim ele abriu mais um buraco na parte debaixo da abóbora. Agora só faltava o principal: vida. Ele então injetou dentro de si uma droga que ele fabricara com a mistura de substâncias tóxicas e viciantes. Ele sabia que seria, a partir daquele momento, dependente químico da droga, por isso estocou centenas de doses em um armário mais no fundo no porão.

Ele sentou-se então numa cadeira confortável e ali permaneceu sentindo o efeito fluir pelo seu corpo, membros e sua mente, principalmente. Ele não estava mais lá, o que restava agora é se deixar levar pela sua mente adormecida em estado automático. Com a cabeça pendendo para trás da cadeira, seus braços se mexeram, seu corpo estava de volta, sua mente estava ativa. A droga afetou seu cérebro de tal forma que não há mais tato em sua cabeça, sendo impossível que ele abra os olhos, mova a boca, as únicas ações que ele podia fazer era a respiração, involuntária e automática, além, claro, do coração que pulsava sangue pelo seu corpo.

Seus braços então se estenderam e localizaram as ferramentas finais, muito menores que aquela que ele carregava no ombro e que esquecera na plantação. Com uma serra elétrica cirúrgica, ele passeou pela cabeça careca que antes usava uma peruca sob um chapéu de palha velho. O sangue escorreu e logo retirou o tampo de sua cabeça e colocando de lado como se fosse a casca de uma laranja. Daí para frente foi mais fácil terminar de serrar seu crânio até que todos seus órgãos pendessem em uma bandeja ao lado da cadeira confortável. Todo o sangue que jorrava escorria por seu corpo e caía em uma bacia sob a cadeira. A pressa era involuntária, a preocupação do corpo com a vida do homem enquanto ele estava ausente era visível. A abóbora então foi cortada ao meio, não sobre a face e a nuca, mas dos lados, fazendo então duas partes iguais. A primeira foi posta, costurada então com uma agulha, emendando a carne do pescoço na parte de trás com a pele e a casca laranja da abóbora. O corpo foi então deitado, a cabeça pendeu e os órgãos do crânio puderam ser posicionados. Ali, ligados com o restante do corpo, os apoios foram devidamente colocados para sustentar alguns órgãos que não se sustentariam em meio aos outros órgãos como os olhos. Estes foram mantidos em posição por duas bases de madeira lixadas e envernizadas perfeitamente pelo homem que cravam-se na estrutura da abóbora. A tampa ou a face foi então colocada. A pele do pescoço foi costurada junto com a carne à abóbora como na parte de trás.

Pelos cálculos do homem, a abóbora foi cortada e a polpa foi removida de forma que o espaço que restasse prendesse os órgãos de tal forma que o sangue não escorresse pelos orifícios, mas isso era inevitável e com o tempo, ele pareceria chorar sangue. Com o retorno da consciência, o homem pôde se levantar e sentir-se, não completamente, mas o suficiente para saber que sua dor alucinante o perturbaria e ele necessitaria de doses da mesma droga, mas que não o desligasse do corpo como antes, mas que tirasse o tato dos órgãos do “crânio”. Tomou uma dose e, depois de algum tempo, caminhou para um espelho. Ele via apenas dois triângulos que se misturavam. Não havia mais dentes, apenas uma língua pendente num espaço apertado que servia somente para abrir espaço para sua faringe, para que ingira agora, somente líquidos. Limitações que, para ele, valiam a pena. Não poderia dormir a não ser com drogas alucinógenas, a cada seis horas ou menos deveria usar uma dose da droga que tira toda a sensitividade de sua cabeça, entre outras óbvias coisas.

Seu objetivo não era assustar criancinhas, ele não tinha isso em mente, por mais que isso tenha passado por sua mente uma hora depois da sua cirurgia. Seu objetivo era ser o que mais ama, o que mais o obceca em sua vida, ser uma abóbora pensante, de forma mais infantil, um rei. Mas isso mudou sem a escolha dele. Ao mesmo tempo em que ele não dava escolhas a seu corpo, seu corpo não lhe dava mais escolhas. O que seria o automático? O que o controlava enquanto ele estava longe de seu corpo, mas ligado a ele? À medida que o tempo ia passando, ele percebia que seu corpo se manifestava da mesma forma que quando ele usava a droga pesada, contra a vontade de sua mente. Seu cérebro começou a controlar cada vez menos os movimentos de seu corpo, tudo se tornava muito automático. Isso pode estar acontecendo devido às drogas e sua mente, por mais que não tenha consciência disso, começou a agir de acordo com o que ele se preparou sua vida toda para fazer naquele momento onde se operaria inconsciente. Foi então que ele lembrou e percebeu que processo de gravar tudo e decorar tudo havia passado dos limites e afetou sua vida. Mas, mesmo quando ele não tomava as drogas, ele era incapaz de habitar seu corpo.

Ele estava fora. As crianças estavam vindo, era fim de tarde, seu corpo estava incontrolável. Ele torcia para que seu corpo reagisse da forma como ele reagiu todas as vezes, ou ao menos ele achava que reagia como todas as vezes em que as crianças vinham. Seu preparo psicológico fugiu dos limites. Ele estava fora e algo estava dentro. As crianças chegaram.


Por Pedro Ruback

2 comentários:

  1. Caro,
    Antes de qualquer coisa, gostaria de me apresentar: meu nome é Thiago Valiati, cinéfilo como você, de Curitiba, 21 anos.
    Estava navegando pela internet e caí no seu blog. Adorei! Você escreve muito bem e domina o assunto. Parabéns!
    E ah, também tenho um blog de Cinema (em fase inicial), se puder dar uma olhada e, eventualmente gostar, adicionar à sua lista de blogs também (adicionei já!), iria me sentir honrado.

    Blog: http://this-is-cult-fiction.blogspot.com/

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